# Digiana 35 - "A vida em meio ao horror"
A realidade, comprimida, embaçada, do Rio Grande do Sul e a necessidade de afinamento de nossas ideias
O Luís Augusto Fischer publicou um texto, “A vida em meio ao horror” (FSP, 26.05.24), sobre a “catástrofe climática” que estamos vivendo aqui no Rio Grande do Sul. Ele começa registrando a dificuldade que temos até mesmo para nomear o que estamos passando: as comparações capengam, os pensamentos se acavalam, a incerteza predomina, nada sabemos com segurança, é ainda curta a distância para análises, estamos no meio do redemunho. Mas ele avança, e bem, nesse esforço de encontrar marcos para debater o assunto.
Algo que chama a atenção, desde os primeiros dias de chuva, na segunda semana de maio, e que dá razão ao que Fischer chama de “embaçamento da percepção crítica”, provocado pela brutal compressão da realidade (que as autoridades chamam de “tudo é muito complexo”), é a variedade de expressões que usamos desde os primeiros dias para nos referir ao que estamos vivendo: “enchente”, “catástrofe”, “tragédia” são as principais, com muitas variações. Logo no início ainda se falava em “evento climático extremo”, mas a coisa assumiu proporções tão grandes e inesperadas e essa expressão, desprovida de emoção, foi abandonada. Está certo o Luís, em falar de horror, é essa a emoção que temos diante de tragédias e catástrofes.
A outra questão surge na forma da pergunta: como chegamos a isso (o dêitico aponta para essa realidade comprimida e embaçada)? Há um consenso, que estamos chegando a isso faz muito tempo, e parece evidente que a maior parte do debate está sendo feito junto à uma reconstituição daqueles fatos que nos levam a isso.
O Luís dá a entender que o afinamento das ideias tem um lugar nesse debate.
Seja, por exemplo, o caso do conceito de tragédia. Em que medida a aplicação dele ao isso diz algo relevante?
Como se sabe em filosofia, essa expressão surgiu para indicar a situação na qual há um jogo entre as ações dos homens e o conhecimento que temos sobre o mundo. O caso de Édipo é sempre ilustrativo. Édipo é o autor da morte de Laios, um velho impertinente que ele encontrou em uma encruzilhada. O que ele não sabia era que o velho impertinente era seu pai. A lição filosófica parece ser essa: nós, humanos, fazemos o que fazemos sob alguma descrição do que fazemos. Nós nunca simplesmente fazemos algo, nós sempre fazemos algo sob uma descrição. Sob uma descrição, Édipo matou um velho impertinente, sob outra matou seu velho. A lição da tragédia é, no mínimo, isso: fazer algo nem sempre é simples, pois sob outra descrição podemos estar fazendo algo bem diferente daquilo que foi mentado por nós.
As tragédias nos fazem refletir sobre as intenções, boas e más, e sobre como elas desencadeiam processos que escapam ao nosso controle.
Um livro que fala dessas coisas é o de Sartre, a Crítica da Razão Dialética. Ele diz ali que a nossa vida cotidiana acontece no meio daquilo que nós mesmos criamos e fazemos, ações e coisas. O trabalho nosso de cada dia é uma forma de relação entre os homens, mas é também uma forma de relação o universo material. Entram aqui os instrumentos, o conhecimento acumulado, a interação por meio da linguagem, a produção de mercadorias, ferramentas, objetos de consumo, objetos de arte. O trabalho humano apropria-se da natureza e de coisas inanimadas e as envolve em projetos que as transformam. Por vezes acontecem coisas que não estavam no plano de trabalho inicial das pessoas. Um dos exemplos no livro de Sartre é o dos agricultores chineses, colonos que arrancam árvores, aram o solo, plantam. Essa ação positiva de cultivo, ao retirar as árvores, retira os elementos e mecanismos naturais que protegiam os rios do assoreamento. E assim a ação do agricultor, muito lentamente, vai criando as condições para que outras coisas aconteçam, que nada tem a ver com as boas intenções dele.
Com essas reflexões Sartre nos convidava a pensar a destruição da natureza como algo que nos obriga a compreender melhor a natureza da ação humana, na medida em que uma certa ação, praticada com uma intenção bem definida, desencadeava processos não intencionados e perversos. As coisas que produzimos, dizia Sartre, tem um lado de vampiro. A casa, por exemplo, pode ser vista como um objeto-vampiro, que absorve nossas ações e se alimenta de nosso suor. Para conservar-se, para permanecer como casa, ela precisa ser varrida, consertada, pintada, habitada, enfim, mantida, para não se degradar e reintegrar-se lentamente na natureza. E, agora, protegida das enchentes.
Acho que cabe, aos poucos, e nos intervalos do que estamos fazendo para nos ajudar uns aos outros, uma reflexão sobre a estrutura das tragédias, uma reflexão sobre as relações entre as ações humanas e os processos que ela desencadeia, e, junto a isso, um entendimento da filosofia como uma ocasião para refletir sobre a cultura e a sociedade a que pertencemos, como uma ocasião em que nos perguntamos porque fazemos o que fazemos, sobre como chegamos aonde chegamos. Há um debate sobre o conceito de ação e a forma como ele se engata com processos que a filosofia precisa retomar.
João Carlos Brum Torres nos ensinou algo sobre isso faz algum tempo. Temos que voltar à agenda que ele sugeriu nos anos 1970.
Você refletiu bem os acontecimentos, tragédia anunciada há anos pelos cientistas ambientais. Agora precisamos convencer nossa sociedade que fazemos parte da natureza, que devemos retirar dela o necessário para manter a vida das comunidades que nela vivem. Precisamos nos unir para restaura-la, porém sem regredirmos no progresso do bem viver.
Olá, Ronai. Cataclisma. Esta foi a melhor palavra que encontrei, até o momento, para descrever o que está aconteceu e ainda está, de certa forma, acontecendo no RGS.