# Digiana 36 - Por uma filosofia sustentável
Da agricultura sustentável eu tenho uma ideia. Mas o que poderia ser uma filosofia sustentável?
A definição de desenvolvimento sustentável pode ser resumida ao dever de suprir nossas necessidades sem a sabotagem das gerações futuras. A lista do que deve ser sustentável é vasta, começa na agricultura, passa pela habitação e mobilidade e vai adiante, na dimensão social, ambiental e econômica. Quero ampliar a lista e falar da filosofia sustentável. É uma metáfora, claro, mas procura preservar o sentido original de “sustentabilidade”: a reflexão filosófica diz respeito a necessidades profundas do espírito humano, pois ela lida com aquelas perguntas clássicas sobre quem somos, o que podemos conhecer, o que devemos fazer, o que podemos esperar, e ela não deve, nesse trabalho, sabotar as capacidades reflexivas das futuras gerações.
Me apresso a explicar que esse tema me ocorreu no contexto da iniciativa do Departamento de Filosofia da UFSM, meu Departamento, de fazer um ciclo de debates sobre Filosofia, Clima e Sociedade. O evento quer ser um espaço de reflexão sobre essas questões, e visa também arrecadar recursos para apoiar as comunidades que carecem de ajuda nesse momento. Fui convidado a falar no evento e me pus a pensar: quais são os recursos conceituais que temos para fazer esse tipo de reflexão, de que forma o filósofo pode meter sua colher nesses temas? Afinal, nosso drama envolveu cheias, chuvas, enchentes, desmoronamentos, e, principalmente, perdas humanas e urbanas em escala nunca vista até então. Nosso interesse, nessa tragédia, são certos eventos, processos, acontecimentos, fatos que se passam, que se repetem, que se agravam, e que voltam e voltam.
E aí eu me lembrei que há toda uma filosofia que tem uma certa dificuldade com os tais de fatos. Há toda uma filosofia para a qual há muito sentido e nada de referência. Nos termos que dão título a esse caderno, O animal digiana, há toda uma filosofia que é apenas digi, sem nada de ana. Há toda uma filosofia na qual vivemos uma era de signos, de sentidos, de significados, e, portanto, apenas de interpretações. Já vi uma camiseta, em uma faculdade de filosofia, com o bigodão do Nietzsche e a frase não há fatos, apenas interpretações. Há uma variante agora, não há fatos, apenas construções. Versões mais fortes ou mais fracas dessa filosofia podem ser encontradas em Derrida, Vattimo, Rorty e outros.
Mas me lembrei também, na mesma toada, que há alguns manifestos contra essa perda do mundo. O primeiro que me caiu nas mãos foi o livro de Gilbert Hottois, L'Inflation du Langage dans la Philosophie Contemporaine, de 1979. O livro discute o que Hottois chama de "secundariedade". Segundo ele, haveria no pensamento contemporâneo, por obra e graça da filosofia linguística das mais variadas origens, uma tendência de eclipse da dimensão referencial. O mundo foi revestido pela dimensão do sentido até o o ponto no qual parece que não podemos mais falar a respeito da natureza e sim apenas sobre nosso discurso sobre a natureza. Com a exploração de textos de Gadamer, Ayer, Peirce e Derrida, entre outros, Hottois chega a conclusão que a secundariedade
“exprime o destino de marginalidade da filosofia contemporânea no sentido que a filosofia, hoje, parece não mais poder ter a palavra a não ser na margem do discurso do outro.(...) A secundariedade se caracteriza pelo eclipse da relação referencial em proveito de uma emancipação ilimitada do sentido. (...) A filosofia secundária tende em direção ao fechamento cada vez mais radical (e polimorfo) na linguagem, acentuando sempre mais a perda da dimensão referencial extra linguística e consolidando a forclusão do cosmos tecno-científico.”
Há outro. O livro de Hans Ulrich Gumbrecht, Produção de Presença – o que o sentido não consegue transmitir (Editora Contraponto, 2010) é outro manifesto contra essa perda da dimensão referencial. Não me canso de voltar aos textos de Gumbrecht para explorar esse tema.
O terceiro livro é o que está na capa dessa postagem, as Lições Introdutórias à Filosofia Analítica da Linguagem, também publicado este mês pela Contraponto Editora. Eu considero as Lições um marco na história de uma filosofia sustentável, aquela capaz de evitar a sabotagem da capacidade reflexiva das futuras gerações. Tenho razões para isso. A primeira delas é que o livro é uma pá de cal nas discussões sobre o Canal da Mancha da Filosofia, sobre a grande divisão entre os filósofos continentais e os filósofos analíticos, anglo-saxônicos. A primeira parte do livro é dedicada inteiramente a mostrar como há linhas de união profundas que tornam tola a discussão. A segunda razão é que o critério fundamental de uma filosofia sustentável é a capacidade que ela tem, mediante argumentos, de não perder a dimensão referencial, de seguir sendo capaz de falar de fatos e de interpretações. E é nesse ponto que o livro é exemplar, pois toda a segunda parte vai, paulatinamente, dando conta das tarefas que devemos cumprir para compreender como funciona essa nossa capacidade de referenciação do mundo. A terceira razão é que o livro apenas aparentemente fala de filosofia da linguagem. Ou melhor, fala de filosofia da linguagem para limpar o terreno para a reflexão antropológica, em uma reflexão sustentável, porque apoiada, filosoficamente, na dimensão da presença humana no mundo, na dimensão do mundo não apenas como representação, mas como referência. Uma filosofia que não sabe mais explicar como lidamos com o tema da referência é, como diria Macunaíma, muita saúva e pouca saúde. Quem lê as Lições não tem esse problema.
O Departamento de Filosofia da UFSM lançou-se ao lago, aceitou o desafio e começa amanhã essa trilha que ajuda a mudar o panorama e o patamar de nossa filosofia. Oxalá.
Ronai, essa é a questão que eu tenho perseguido (e que me persegue) há décadas. Em 2004 publiquei um livro que defende as multiplicidades abertas do mundo, o mundo _com homem_, o homem _com mundo_, contra o fechamento da Lei do Um, que é esse movimento de atmosfera rarefeita que você denuncia nessa postagem. O livro ia se chamar *A arte da guerra*, mas Sun-Tsu já tinha registrado o título… Ficou (não gosto) *Comunicação e Diferenca*. O subtítulo é que define: “uma filosofia de guerra para uso dos homens comuns” É uma convocação para a guerra das multiplicidades, do mundo da vida. Hoje, desde 2016, tenho batalhado para encontrar um lugar para a filosofia na experiência da banalidade das nossas vidas _comuns_ - não “a Vida” do meu querido Nietzsche. Que s filosofia possa aspirar a ser a reflexão sobre as nossas vidas comuns à medida em que as vamos vivendo em comum, fazendo comunidade. Está difícil. Tentei em vários cursos (estão no YouTube) mas dei com o nariz na parede. Estou agora dando uma volta “por fora” - Nietzsche, Heidegger e Foucault (também no YouTube se você tiver interesse). No fundo estou perguntando: e agora, o que que eu faço pra tirar o nariz da parede? Quero encontrar um caminho não reativo para encontrar de novo o amor à realidade e à verdade de que s filosofia viveu mais de dois milênios, e as filosofias da linguagem dinamitaram. Um caminho não ingênuo, nenhuma “volta a Aristoteles”. Com referência, representação (seja lá o que isso for hoje). Sinto que estamos em caminhos paralelos. Isso me alegra.